Em Arruda dos Vinhos, nobre cidade e sede de concelho, há muito que se fala de uma nascente, ali num pequeno lugar que tem por nome, Mata. Zona com muita flora e fauna onde pontificam algumas linhas de água, não sendo indiferente o facto de ali existirem boas zonas de planaltos.

Figura 1 – Foto da zona de planalto onde se desenvolve a gruta Cano de Sintra. (Foto de José Ventura – GEM).
De facto há muito que aqui por estas terras se fala da gruta do Cano de Sintra, existe inclusive uma história, lenda, cheia de misticismo, relatando acontecimentos dramáticos!!!
Lenda dos Quarenta Queimados
No Lugar da Mata há uma Lapa que se crê ter ligação subterrânea a Sintra, sendo por isso conhecida por “Cano de Sintra”. No seu interior existem corredores labirínticos, alguns deles sem saída, onde os mouros ocultaram grandes tesouros.
Durante a crise de 1383-1385, o rei de Castela, D. João, a caminho da cidade de Lisboa para cercá-la e tomá-la aos portugueses, pernoitou no Paço de Arruda. Durante a noite, dois fidalgos Arrudenses que se tinham escondido debaixo do leito onde dormia o rei castelhano tentaram apunhalá-lo mas foram descobertos e condenados de imediato à morte na forca. A população, com medo, abandonou a vila e escondeu-se no “ Cano de Sintra”. Os castelhanos, apercebendo-se da fuga, incendiaram a entrada da gruta, provocando assim a morte a 40 pessoas.
http://www.cm-arruda.pt/lendas-locais (pesquisa de Vítor Amendoeira)
Bom, num passado mais recente, precisamente nas grandes cheias de Novembro 1966, segundo o relato do conterrâneo, Sr. João António, que vive bem perto da pequena ribeira, alimentada pela água que brota do Cano de Sintra:
– Nessa noite choveu aqui como nunca, a água saía com tal força que extravasou a ribeira e destruiu aquela casa que ali se encontrava, morreram muitas pessoas aqui em Arruda dos Vinhos, foi só destruição e morte.

Figura 2 – Foto da casa em ruínas, ao lado da pequena ribeira. (Foto de José Ventura – GEM).
Ora muitos espeleólogos e curiosos tem certamente visitado esta gruta, recordo-me de a ter visitado pela primeira vez em Abril de 2001, e ter ficado à entrada pois a água era tanta que não nos permitia entrar na gruta.
Recentemente o GEM, voltou a visitar esta cavidade, mas com o objetivo de a conhecer um pouco melhor, assentando o nosso trabalho na topografia, fotografia, conhecimento da sua geologia, trabalho de desobstrução na ponta de exploração, prospeção e claro muito convívio.

Figura 3 – Foto da entrada do Cano de Sintra no verão de 2019. (Foto de José Ribeiro – GEM).
Infelizmente não temos qualquer foto da nascente com bastante descarga, como foi relatado anteriormente. Sabemos que em época de grande pluviosidade, ela ocupa boa parte da entrada da cavidade.

Figura 4 – Foto da entrada do Cano de Sintra em Abril de 2020. (Foto de Vítor Lourenço – GEM).
Adverte-se também e mais uma vez que para sua proteção e da própria cavidade o espeleólogo tem de ter obrigatoriamente formação!!!
A gruta do Cano de Sintra abre-se a superfície à cota 260 m, é uma surgência perene (de acordo com a definição de Bogli, 1980), pois a nascente não debita água permanentemente.
Acede-se à entrada seguindo a linha de agua em terreno inclinado, chegando a uma escarpa de alguns metros de altura. Após subirmos pequeno destrepe alcançamos a entrada com aproximadamente 1,5m X 1,5m.

Figura 5 – Foto da entrada da gruta e inicio do Meandro dos 40 Mortos . (Foto de José Ventura – GEM).
Entramos então no meandro dos 40 Mortos, zona em que a altura da gruta varia entre 1 metro e os 3 metros, de largura também irregular, mas consegue-se boa progressão. O chão é de cascalheira, irregular muito derivado ao fluxo da agua. Algumas bancadas laterais, se assim lhe podemos chamar pontificam nesta zona.

Figura 6 – Foto no Meandro dos 40 Mortos . (Foto de José Ventura – GEM).
O meandro tem aproximadamente 43 metros de extensão em padrão meandriforme, com orientação predominante no sentido NO. A inclinação é baixa, o desnível da entrada até termino deste meandro é de cerca de 0,5 metros.
Em épocas de chuva observamos aqui e ali pequenos morcegos, já no tempo seco muito mosquito junto a entrada, algumas aranhas e pequenos caracóis. Observamos também aqui e ali pequenos fungos.

Figura 7 – Foto de pequeno fungo. (Foto de José Ventura – GEM).
Segue-se a conduta das tormentas, demos-lhe este nome pois a progressão é sempre feita a rastejar, no máximo de cócoras e tem uma extensão de aproximadamente 106 metros.

Figura 8 – Foto dos primeiros metros da progressão na Conduta das Tormentas. (Foto de José Ventura – GEM).
É de facto uma zona muito dura para chegar mais além. O chão tem alguma pedra solta, mas na generalidade é mesmo muito irregular, derivado à corrosão da agua que vai corroendo o calcário com a sua força e o passar dos tempos.

Figura 9 – Foto de progressão na Conduta das Tormentas. (Foto de José Ribeiro – GEM).
Como se observa nas fotos acima, esta zona tem no sua parte de maior altura 1 metro, mas na generalidade nunca ultrapassa o meio metro. A orientação desta conduta é geralmente no sentido NNO. Percebe-se na gruta e com apoio no perfil desdobrado da topografia, que existem zonas onde a água ocupa todo o espaço, daí em algumas zonas a concentração de argila, nomeadamente nas zonas onde se criam os sifões, já com caudal mais reduzido, como se verifica na imagem abaixo.

Figura 10 – Foto de progressão na Conduta das Tormentas, zona final. (Foto de José Ventura – GEM).
Terminando a progressão nesta zona, segue-se o meandro do corno, e não se pense que seguir em frente é muito melhor, “é a tarimba das freáticas”.
Foi dado o nome de meandro do corno a este tramo da cavidade, derivado à forma única de rocha que sobressai do teto no seu inicio.

Figura 11 – Foto da forma de rocha no teto do inicio do meandro do corno. (Foto de José Ventura – GEM).
Atenção no inicio desta zona da gruta sentimos claramente a quebra de oxigénio, não sendo alheio o fato de quando em carga ser possivelmente, esta uma zona de sifão e haver menos circulação de ar. Recorremos ao uso de garrafa de ar comprimido, como se pode ver na imagem abaixo.

Figura 12 – Local de quebra de oxigénio. (Foto de José Ribeiro – GEM).
Aqui a gruta volta a mudar de configuração, na generalidade avançamos um pouco em ziguezague, o chão é sempre de argila e alguma areia, sendo esta muito fina. A altura deste meandro inicialmente é baixa, mas na generalidade esta entre 1,5 metros e 2 metros, já a sua largura raramente ultrapassa 1 metro.

Figura 13 – Foto de zona no meandro do corno. (Foto de José Ventura – GEM).
Este meandro tem o desenvolvimento de 115 metros aproximadamente, tem pouca ou quase nenhuma inclinação, a sua orientação predominante é no sentido NO.
Segue-se o meandro das prateleiras, zona a qual demos este nome graças as muitas bancadas laterais ali existentes que parecem aquelas prateleiras para arrumar os muitos livros de uma biblioteca qualquer.

Figura 14 – Foto do inicio meandro das prateleiras. (Foto de José Ventura – GEM).
Aqui neste meandro andámos quase sempre em pé, variando a altura entre 1 metro e os 2,5 metros. É também a zona mais larga da gruta, mas a sua própria largura é inconstante e tem varias bancadas laterais, algumas bem encostadas ao teto e outras mais baixas, como se verifica na imagem abaixo.

Figura 15 – Foto do meandro das prateleiras. (Foto de José Ventura – GEM).
O chão é muito irregular, como na conduta das tormentas, não sendo indiferente o fato de este tramo ter 1,5 metros de inclinação, descendente no sentido da nascente, quando em carga a agua deve correr bem. A sua orientação predominante é no sentido ONO e tem uma extensão de aproximadamente 82 metros.
A zona final deste meandro a diferença de altura do chão em relação a entrada é de mais 4 metros, nesta zona há vários blocos no chão e a gruta começa a “afunilar”, até chegarmos a zona de desobstrução.

Figura 16 – Foto da zona final do meandro das prateleiras. (Foto de José Ventura – GEM).
Aqui a gruta muda radicalmente. A argila domina o espaço, é tudo muito confinado.

Figura 17 – Foto da zona inicial da desobstrução. (Foto de José Ventura – GEM).
A desobstrução foi iniciada em Agosto de 2019, por Vítor Lourenço (GEM), Maria Barata (GEAL) e Paulo Pereira (GEAL), que após alguma persistência conseguiram abrir a passagem para se conseguir chegar mais a frente.

Figura 18 – Foto do trabalho de desobstrução. (Foto de Vítor Lourenço – GEM).
A gruta continua, inicialmente descendo um pouco, sempre com muita argila mas já um pouco mais largo que a zona de desobstrução.

Figura 19 – Foto da zona a seguir a desobstrução. (Foto de José Ribeiro – GEM).
A frente a volta a abrir, aqui o teto as paredes e o chão estão forrados de argila, e é visível a presença de agua.

Figura 20 – Foto da continuação da gruta. (Foto de Vítor Lourenço – GEM).
A gruta continua claramente, os trabalhos na altura de exploração foram interrompidos derivado a presença de CO2, pois o Vítor Lourenço sentiu dores de cabeça, decidiu e bem regressar.
No que diz respeito aos trabalhos dentro da gruta, foi realizado a desobstrução e a respetiva topografia como se observa nas imagens a baixo.


Figuras 21 e 22 – Planta e Perfil desdobrado da Gruta Cano de Sintra.
Geologia
Potencial de carsificaçao das formações
A gruta desenvolve-se em calcários da formação dDE Calcários Corálicos do Amaral do andar Kimerdgiano, do Jurássico Superior. De acordo com Zbyszewski e Assunção, 1965 esta formação é composta por massas calcárias, por vezes separadas por margas ou margo-calcários. É nesta formação que se formam as escarpas na parte superior das vertentes desta região. A sua espessura aparenta ser em alguns sítios de 100 metros, sendo que os seus 50 metros inferiores são de calcário rijo. A formação de Calcários Corálicos do Amaral terá um grau de carsificação considerável, devido ao um mais elevada percentagem de carbonatos.
A formação de Calcários Corálicos do Amaral encontra-se “encaixada” entre outras duas formações também carbonatadas mas menos carsificáveis. Sob esta formação encontra-se a formação de Calcários de Abadia, também do andar Kimerdgiano e do Jurássico Superior. De acordo com Zbyszewski e Assunção, 1965 os Calcários de Abadia são compostos por um complexo de margas e argilas, com intercalações de grés, conglomerados e camadas lenticulares de calcários recifais. Sobre a formação de Calcários de Abadia encontra-se o Complexo Pteroceriano também do andar Kimerdgiano e do Jurássico Superior. Este complexo(Zbyszewski, 1965) varia litologicamente lateralmente e ao longo da sua espessura sendo composto por calcários (embora nem sempre) e por níveis greso-margosos.

Figura 23 – Implantação da planta da gruta em extrato da Folha 30-C da Carta Geológica de Portugal à escala 1/50000. (Extrato sem escala). A planta da gruta encontra-se representada a vermelho. Azul marinho com riscas azuis -Calcários Corálicos do Amaral, Azul marinho – Calcários de Abadia, Creme – Complexo Pteroceriano,
A gruta tem um claro controlo estrutural pelas camadas, seguindo a formação de Calcários Corálicos do Amaral, como se observa na figura acima, onde se desenvolve devido ao seu maior potencial de carsificação. Apesar da elevação onde se situa a gruta se dever a um empolamento das camadas, estas apresentam-se localmente subhorizontais. A reduzida inclinação da gruta dever-se-à a isso.
A boca da gruta/nascente forma-se no contacto entre a formação de Calcário Corálicos do Amaral e a menos permeável formação subjacente de Calcários de Abadia, o que, permite classificar a nascente como uma surgência de superfície de estratificação.
A gruta do Cano de Sintra pode ser classificado como uma gruta suspensa, onde o aquífero se encontra acima do nível de base, ao estar suspenso sobre um aquicludo. De acordo com Audra e Palmer, 2015, as grutas suspensas caracterizam-se pelo desenvolvimento de condutas no topo do aquicludo, as condutas desembocam em nascentes que se abrem a meia vertente.
A gruta desenvolve-se aproximadamente à cota 260 metros, muito cima da cota do nível de água no aquífero cársico regional mais próximo, (o sistema Ota-Alenquer). De acordo com Mendonça, 2018 as águas deste aquífero cársico são captadas em furos localizados em Alenquer (junto a nascentes cársicas situadas no ou perto do vale do Rio Alenquer) e na Ota, também em furos localizados nas proximidades de nascentes cársicas, junto ao leito do rio Ota. A cota do nivel de água em ambos os campos de furos encontra-se entre os 20-30 metros, ou seja perto de 230 m, mais baixo que a cota do Cano de Sintra.
Texto de geologia de Paulo Rodrigues.
Com base no conhecimento que agora temos da cavidade e visto ser época de chuva, estamos de momento a trabalhar no exterior. Colocamos a poligonal da topografia em mapa e verificamos a gruta se dirige para uma linha de agua que desce junto ao vale das figueiras, como se pode observar na imagem abaixo.

Figura 24 – Poligonal da topografia da gruta Cano de Sintra colocada em foto de satélite extraída do Google Earth (Pedro Robalo).
Havendo a possibilidade de a ribeira alimentar a gruta por intermédio de alguns sumidouros, se assim lhe podemos chamar. Não nos é indiferente também o fato de no inicio da ribeira existir um poço, que segundo os conterrâneos, tem agua todo o ano e é de captação natural. Segundo o Sr. Joaquim Santos, proprietário de algumas hortas bem perto, já os seus avós que viviam no pequeno lugar da Carvalha, ali iam buscar agua para viver. Poderá eventualmente a mesma agua alimentar a ribeira e a gruta, não sabemos resta-nos procurar….


Figuras 25,26 – Imagens do poço e do seu interior a cota 310 m. (Foto de José Ventura – GEM).
Bom amigos partilhamos o nosso trabalho junto com a topografia, para que o conhecimento não se perca.
Avisamos desde já que a exploração desta gruta nunca devera ser feita com tempo de chuva e muita atenção as zonas de concentração de CO2.
Planta da Gruta Cano de Sintra em pdf A3 para download
Gruta Cano de SintraP
Perfil desdobrado da Gruta Cano dee Sintra em pdf A3 para download
Gruta Cano de SintraS
Resta dizer também que os trabalhos continuam e que o Cano de Sintra ainda tem segredos por revelar…….
Texto de José Chouriço.
Abraço…
Referências Bibliográficas
Bögli, A. (1980), Karst Hydrology and Physical Speleology, Springer-Verlag, Berlin Heildelberg New York.
ZBYSZWESKI, G.; ASSUNÇÃO, C. T. (1965) – Carta geológica dos arredores de Lisboa na
escala de 1/50.000: Notícia explicativa da folha 30-D Alenquer. Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal.
Mendonça, J.L. (2018), As águas subterrâneas e o abastecimento água a Lisboa as-captações da EPAL. EPAL- Empresa Portuguesa das Águas Livres S.A., 228pp.
Audra, Philippe, Palmer, Arthur N. (2015). Research frontiers in speleogenesis. Acta carsologica, 44, pp315-348.
Publicado em Espeleologia
Comentários Recentes